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Contra retrocessos, os 3 pilares da nova tributação de combustíveis

14/06/2023

Fonte: JOTA

Mais de duas décadas se passaram entre a promulgação da Emenda Constitucional 33/2001 e a edição da Lei Complementar 192/2022. Nesse intervalo, no que se refere à tributação de combustíveis derivados ou não de petróleo – aqui, em especial a ICMS –, administrações fazendárias e contribuintes tiveram que conviver com diversas regras: substituição para frente versus tributação no destino; produtos que fisicamente se misturam, mas que tinham regimes distintos; possibilidade de cargas diferentes em até 27 entes federados; complementos; restituições; ajustes.

Enfim, um sem-número de normas e determinações que tornavam o modelo de tributação desse segmento possivelmente o mais complexo do já complexo Sistema Tributário Nacional (repita-se: falando-se apenas do ICMS…).

Assim, tratava-se de contexto normativo extremamente prejudicial para toda a economia, majorando – e muito – o custo de conformidade (compliance) das empresas/contribuintes, assim como o ônus fiscalizatório das administrações públicas, em particular dos estados. E mais: trata-se de sistemática que servia como convite para atuação de quem usava esse segmento para fraudar a concorrência – considerando ser setor com alto faturamento e baixas margens, qualquer (indevida) vantagem pode ser decisiva –, ou para cometer crimes ainda mais graves, como lavagem de dinheiro. Ou seja: devedores contumazes em ação, cuja sonegação fiscal servia como nítido fomento ao crime organizado e à geração de significativos danos aos cofres públicos. Tudo por conta da complexidade excessiva do regime de tributação que, como dito, poderia ter sido ajustado há mais de 20 anos.

Em que pese (mais) esse atraso histórico, fato é que, finalmente, com a implementação da LC 192/22 e a sua efetiva produção de efeitos – para o diesel, o biodiesel e o GLP, no último dia 1º de maio, e para a gasolina e o álcool anidro, agora em 1º de junho –, a sociedade brasileira coloca à prova novo regime de tributação que se fundamenta em três pilares principais: simplificação, racionalização e transparência. E isso, claro, quando se compara o sistema que começa a dar seus primeiros passos com aquele que começamos a deixar para trás.

Portanto, é sobre a relevância jurídica, social e econômica desses três pilares que vale aqui deixar o registro, sobretudo nesse momento de seus reais “nascimentos”. Na construção desse novo paradigma – que tanto demorou e tão custoso foi para se colocar de pé –, a batalha passa a ser para a sua manutenção e consolidação, não se aceitando um passo que seja para trás. O caminho é para frente, é de avanço, de preservação e aperfeiçoamento de uma conquista que vai muito além de qualquer governo, de qualquer bandeira ideológico-partidária. Se há bandeira, é a do Estado brasileiro e da tentativa de desenvolvimento de cidadania fiscal.

Simplificação

Com a edição da LC 192/22, passou a vigorar, no mercado de combustíveis – reitere-se: diesel, biodiesel, gasolina, álcool anidro e GLP –, o regime de tributação dito “monofásico”. Mas o que isso significa? Significa que, com base no definido pela EC 33/01 (artigo 155, § 2º, inciso XII, alínea “h”, da Constituição da República), agora há apenas um fato gerador para toda a cadeia econômico-produtiva, que se dará na importação ou na produção dessas mercadorias. De mesma sorte, se estará diante de somente um contribuinte de ICMS, que será, por consequência lógico-jurídica, o importador ou o produtor.

Trata-se de diferença essencial em relação ao “antigo” regime de substituição tributária para frente, cuja base constitucional está no § 7º, do artigo 150 da Carta. De acordo com o mesmo, até existe um contribuinte (substituto) que faz o recolhimento de “todo” o imposto: primeiro por si (ICMS próprio) e depois pelos demais contribuintes (substituídos) da cadeia (ICMS-ST). No entanto, além de se estar diante de vários contribuintes – o que já seria motivo de complexidade adicional, ante o maior número de deveres instrumentais a cumprir que essa condição em geral contempla –, o regramento anterior levava à necessidade de “ajustes” quando da efetiva venda/consumo desses combustíveis.

Isso porque, desde o fim de 2016, com decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nos autos do Recurso Extraordinário 593.849/MG (Tema 201), passou a valer o dito “fim da definitividade da substituição tributária”. Com isso, se o montante de imposto recolhido pelo substituto (produtor ou importador) tiver sido diverso do arcado pelo último substituído (em geral, os postos revendedores), far-se-ia necessária, por parte desses, a efetivação da complementação ou a requisição da restituição da diferença. E isso, “no mundo real”, sempre foi penoso aos contribuintes, considerando a corriqueira não devolução “de forma imediata e preferencial” (§ 7º, do artigo 150, da CF) dos recursos financeiros retidos – diferente da (questionável) complementação, cobrada na primeira oportunidade possível.

Com a monofasia, essa gigantesca complexidade – variados contribuintes; complementos; restituições; ajustes de “fim de cadeia” – cai por terra. Traz-se mais simplicidade nas formas de pagamento e recolhimento do ICMS para o segmento que representava para os cofres estaduais, antes da pandemia, cerca de 30% da arrecadação desse tributo. Portanto, torna-se mais simples, para os contribuintes, e seguro, para as administrações fiscais, o regime de setor crucial para a economia de qualquer país.

Racionalização

Além de transformar o regime e deixá-lo mais simples, as regras da LC 192/22 também lhe conferiram mais racionalidade. Isso porque, fora a incidência única, foi igualmente determinada a fixação de alíquota uniforme, para cada produto, em todo o território nacional. Dessa forma, deu-se passo decisivo – ao menos nesse setor – para o término da guerra fiscal entre estados, já que deixaram de existir diferentes índices entre eles, o que, não raro, era decisivo para se definir todo um modelo de negócio (exemplo: quem sabe alguns ditos “postos de fronteira” localizados próximos às divisas entre estados não voltam a operar, considerando o fim de cargas tributárias extremamente discrepantes a poucos quilômetros de distância?).

Da mesma maneira que reduzir o número de fatos geradores e de contribuintes já teria sido, por si só, motivo suficiente para comemorar a simplificação do regime de tributação dos combustíveis, o fim da guerra fiscal entre estados o seria no que se refere à racionalização desse modelo. Porém, além disso, com a uniformização de alíquotas – somada à instituição da monofasia – deixam de ser necessários os irracionais “ajustes de meio de cadeia”. Leia-se, situações nas quais, diante da observância das regras (i) do recolhimento presumido feito pelo contribuinte substituto (produtor ou importador) na substituição para frente e (ii) da tributação no destino, poderia caber ao contribuinte substituído, “de meio” de cadeia (em geral, distribuidores) – não mais “de final”, como na hipótese anterior, da “simplificação” –, efetivar complementos ou requerer restituições quando da ocorrência de operações interestaduais. Tudo por conta da sistemática então em vigor e das diferentes cargas e alíquotas fixadas, autônoma e independentemente, pelos estados.

Assim, a uniformidade de alíquotas veio para trazer racionalidade a essa regra de “substituição tributária com complemento ou restituição no meio da cadeia”, bem como reduzir, e muito, a guerra fiscal entre estados. “Ganha-ganha” para (bons) contribuintes e administrações tributárias.

Transparência

Como complemento dos pilares anteriores, a adoção da famosa “alíquota ad rem” – índice ou valor fixo, aplicado sobre uma unidade de medida definida (no caso dos combustíveis, o litro ou o metro cúbico) confere mais transparência aos contribuintes de qual carga tributária é de fato assumida na aquisição dos cinco produtos inseridos na LC 192/22.

No modelo anterior, uma alíquota percentual (ad valorem) era calculada sob bases constantemente alteradas, o que decorria de suas, digamos, “naturezas” jurídico-econômicas – preços médios ponderados finais (PMPFs) e margens de valor agregado (MVAs). Não à toa, essa variação constante, somada a regras pouco “amigáveis”, tornavam obscuros e quase abstratos, aos contribuintes, os valores de ICMS suportados em cada transação mercantil.

Na monofasia, esse “intangível” regime dá lugar a um modelo no qual toda a sociedade é clara e abertamente informada sobre o custo tributário assumido nas mercadorias adquiridas (por exemplo: neste momento, de norte a sul do Brasil, em cada litro estão “embutidos” R$ 1,22 e R$ 0,94 de ICMS, na gasolina e no diesel, respectivamente). Portanto, não mais “letras miúdas” na tributação.

Por sua vez, a nova sistemática traz também benefícios às administrações tributárias, gerando maior previsibilidade de arrecadação. Isso se dá porque, sem a indexação do tributo ao preço, oscilações de mercado tendem a ser menos relevantes para estimar quais montantes ingressarão nos cofres públicos em determinado lapso de tempo.

Situações extraordinárias como, por exemplo, a guerra da Ucrânia – que ocasionou fortes variações internacionais no preço do petróleo – impactariam menos as expectativas financeiras dos Estados. Com isso, obrigações estatais como o pagamento de servidores e a manutenção de serviços públicos básicos ficam menos suscetíveis – ao menos em curto e médio prazos – de sofrer com eventuais descontinuidades.

Assim sendo, uma vez somada às regras anteriores – monofasia e uniformidade de alíquotas –, a da alíquota ad rem representa evidente avanço nessa construção de modelo de tributação mais transparente à toda a sociedade, em nítido avanço político, social e econômico. Até porque contribuintes que não tenham clareza e tangibilidade reais de o que pagamquanto pagamcomo pagampara quem pagam terão muito mais dificuldades para indagar – se assim desejarem – por que pagam. E, sem esse legítimo questionamento, não se constrói uma sociedade verdadeiramente cidadã, na qual todos devem, podem e querem (ainda bem distante!) contribuir para a formação do bem comum.

É óbvio que esse novo regime ainda precisa de aperfeiçoamentos e que possui pontos de atenção. Aperfeiçoamentos no que se refere a certas regras dispostas nos Convênios ICMS editados pelos estados para regulamentá-lo (199/22 e 15/23) – como (i) a da limitação de créditos de insumos (ou seja: produtos que sequer estão submetidos ao novo modelo) ou (ii) a da tentativa de criação de fatos geradores “incidentes” em momentos posteriores à produção ou à importação. Trata-se de previsões estranhas aos pilares nos quais se fia o regime, que têm de ser revistas, pelo bem da sistemática.

Alguns pontos de atenção no que tange a discussões jurídicas ainda em curso, que questionam a constitucionalidade do modelo (Ações Diretas de Inconstitucionalidade 7.164 e 7.191), bem como projetos de reforma ampla na tributação do consumo (PECs 45 e 110), que visam substituir o ICMS (e outros impostos e contribuições) por novos tributos, como o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) ou o Imposto sobre Valor Agregado (IVA). Em ambas as hipóteses os avanços do regime monofásico podem estar em risco, seja pela tentativa de fulminá-lo, seja de substituí-lo, significando retrocesso dos mesmos 21 anos de debates e negociações que levaram à sua tão aguardada implementação.

Se temos um recado a deixar, é esse: não podemos retroceder.

Nós, a sociedade brasileira, não podemos permitir que as conquistas – ainda em construção! – de um regime fundamentado em simplicidade, racionalidade e transparência sucumbam aos interesses de quem ganha com complexidade, irracionalidade e obscuridade, típicas da sistemática anterior e convite gentil apenas para a sonegação fiscal e para a atuação do crime organizado.

Na verdade, dever-se-ia agora estudar a extensão das regras previstas pela EC 33, no longínquo ano de 2001 – e, finalmente, instituídas pela LC 192/22 – para outras commodities, levando aos seus mercados os mesmos benefícios trazidos ao segmento de combustíveis (que ainda aguarda a inclusão do etanol hidratado no modelo). Ou seja: é hora de seguir para frente. Apenas para frente. Nunca para trás.

Em recente evento que participamos juntos, o grande amigo e tributarista José Guilherme Costa[1] disse algo (especialmente) sábio e sintetizador de por que acreditamos, defendemos e batalhamos pelas ideias de simplicidade, racionalidade e transparência que aqui compartilhamos: “precisamos evoluir como sociedade”. Sim, precisamos. E isso só se faz com a real formação de cidadania fiscal, em que cada integrante da sociedade tiver a oportunidade de concluir se “tributo é roubo” (?!) ou se é o instrumento que nos ajuda a materializar a melhor vida em comunidade que decidirmos e pudermos construir.

Fico com a segunda.


[1] A monofasia no ICMS de combustíveis: Tributação em Perspectiva no IBET-RJ (https://www.youtube.com/watch?v=Ym7uy6pPXuo)

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