Robinson Barreirinhas afirma que fiscalizações vão ganhar força com o envio pelas instituições das movimentações financeiras dos clientes, a partir deste mês
A Receita espera receber das fintechs, ainda este mês, informações sobre as movimentações financeiras de seus clientes realizadas desde o início do ano. Isso vai potencializar as fiscalizações, afirmou ao Valor o secretário Robinson Barreirinhas.
Ele disse ter “certeza” de que essas instituições são utilizadas não só pelo crime organizado que atua no setor de combustíveis, mas por outros ramos. “Nós já detectamos há algum tempo a utilização de fintechs em pelo menos três setores: combustíveis, bets ilegais e contrabando de cigarro convencional e cigarro eletrônico.”
A reedição da norma que obriga fintechs a prestar informações à Receita foi um saldo das megaoperações deflagradas na semana passada, que expuseram a atuação do crime organizado no setor de combustíveis e na lavagem de dinheiro por meio de fintechs. Outro resultado foi a aprovação, pelo Senado Federal, do Projeto de Lei Complementar (PLP) 125, que tipifica o devedor contumaz.
Em apreciação na Câmara dos Deputados, o projeto pode dar à Receita Federal seu mais poderoso filtro para selecionar quais empresas fiscalizar, disse o secretário.
A nova lei também abre caminho para levar à prisão os sonegadores de impostos, algo inédito no Brasil. “Hoje, no Brasil, ninguém vai preso por crime contra a ordem tributária”, disse. A punibilidade é afastada se a dívida tributária é paga, ainda que de forma parcelada, explicou. A proposta acaba com essa possibilidade no caso de devedores contumazes. Outro ponto da lei, se aprovada, é reduzir tributos para empresas com bom histórico de relacionamento com o Fisco.
Barreirinhas avaliou que as megaoperações da semana passada vieram
no momento adequado, quando as fintechs vinham apresentando forte crescimento nos volumes movimentados.
O governo prepara também regras para o uso de criptomoedas. Receita, Banco Central e Comissão de Valores Mobiliários (CVM) estão em articulação para enfrentar mais esse desafio, disse o secretário. A seguir os principais pontos da entrevista ao Valor:
Valor: O Projeto de Lei Complementar [PLP] 125, que tipifica o devedor contumaz, passou muito bem no Senado. Acha que a Câmara o aprova rapidamente?
Robinson Barreirinhas: Eu acredito que sim, por tudo que temos falado nesses dois últimos anos. Acho que ficou bastante evidente a importância dele. O próprio setor empresarial percebeu do que se trata, que não é um projeto de lei que se refira aos empresários sérios. Acho que há um ambiente agora para aprovação também na Câmara dos Deputados.
Valor: Será necessário alterar algum ponto?
Barreirinhas: Não, porque o texto foi pactuado conosco da Receita. Lembrando que a parte da conformidade, o Confia e o Sintonia, também está lá e é muito importante. Há um bônus de adimplência para a redução da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, permitindo que a gente avance naquela nossa política de Receita Federal orientadora.
Valor: De que forma a tipificação do devedor contumaz ajudará a Receita Federal?
Barreirinhas: A Receita trabalha com gestão de risco. Não teríamos condições de abrir fiscalização para todo mundo, para depois verificar quem está certo e quem é errado. Precisamos fazer um filtro inicial. O devedor contumaz é um dos filtros mais poderosos que nós vamos ter. Porque, de início, nós já identificamos aqueles que estão agindo de maneira incorreta, inclusive dando transparência e publicando na internet.
Valor: A lei é um instrumento poderoso porque permitirá informar quem são os devedores contumazes. O que mais?
Barreirinhas: Hoje, no Brasil, ninguém vai preso por crime contra a ordem tributária. Alguém entra na sua casa, rouba a sua televisão. Dali a pouco, a polícia pega ele [o ladrão] e fala: “Não me prende, porque eu vou parcelar em dez anos para pagar a TV dela”. A legislação tributária é isso. Essa lei afasta essa exoneração criminal para o devedor contumaz.
Valor: A possibilidade de cancelar a inscrição no CNPJ, como está no projeto, demora um pouco. Ajuda de que forma?
Barreirinhas: Agiliza. O rito do devedor contumaz, ainda que seja demorado, com todo o contraditório, é muito mais rápido que o processo administrativo normal. Suspender o CNPJ é importante, porque a gente sabe que a empresa está lá na ilegalidade, mas continua emitindo nota fiscal.
Valor: As megaoperações mostraram um forte envolvimento das fintechs. Em que medida o sistema financeiro está contaminado?
Barreirinhas: São valores muito altos envolvidos, mas não chega a ser algo que derruba o sistema financeiro, evidentemente. Me parece que nós atacamos no momento adequado. O crescimento das fintechs é de poucos anos para cá. Então, apesar de essa operação ter pego a movimentação desde 2020, o volume maior foi do ano passado para este ano.
“Suspender o CNPJ é importante, porque a gente sabe que a empresa está lá na ilegalidade, mas continua emitindo nota fiscal”
Valor: Quando as fintechs entregarão a e-Financeira [conjunto de dados enviados pelas instituições financeiras à Receita, cujo objetivo é auxiliar ações de fiscalização e combate à sonegação fiscal]?
Barreirinhas: Este mês as empresas [fintechs] vão ter que apresentar informações em relação ao primeiro semestre.
Valor: Essa medida é suficiente?
Barreirinhas: Nós já detectamos há algum tempo a utilização de fintechs em pelo menos três setores: combustíveis, bets ilegais e contrabando de cigarro convencional e cigarro eletrônico. Instituições financeiras e fintechs sempre foram proibidas de fazer operações financeiras com bets ilegais. Na MP [Medida Provisória] 1.303 tem um dispositivo que estende as sanções administrativas para as fintechs. Aquela mesma multa que a gente aplica para bets ilegais vamos aplicar na instituição financeira. No PLP 182, dizemos que a instituição responde pelos débitos tributários da bet ilegal.
Valor: Mas vocês podem responsabilizar a instituição financeira por um crime tributário cometido pela bet?
Barreirinhas: Há um ilícito cometido pela fintech. A lei proíbe que ela faça movimentação [financeira da bet ilegal]. Ela descumpriu a lei e esse descumprimento gera a responsabilidade.
Valor: O que mais vocês estão apertando?
Barreirinhas: No ano passado soltamos medidas para suspensão sumária de CNPJ de empresas que forem pegas comercializando produtos contrabandeados. Também soltamos uma norma que permite a fiscalização de contêineres que estão de passagem para o Brasil para outros países da América Latina. Literalmente, no primeiro que abrimos, pegamos meio milhão de cigarros eletrônicos com instruções em português. Sabemos que esses bilhões de reais de venda de cigarros contrabandeado de cigarros eletrônicos, têm que sair do Brasil. Temos uma frente de investigação para pegar o pilar financeiro dessas operações todas.
Valor: O que as operações mostraram foi um esquema de lavagem de dinheiro do crime organizado ou um esquema de lavagem de dinheiro que opera nas fintechs e que é utilizado para outro tipo de ilícitos?
Barreirinhas: Tenho evitado de falar quem é e quem não é. A Receita não faz o julgamento. São o Ministério Público e a Polícia Federal que fazem essa ligação com o crime organizado. O que me importa é que é, sim, uma sistemática de lavagem de dinheiro. Presumo que não seja só de combustível. Porque há mais de cem postos de gasolina que não tiveram movimentação nenhuma, mas fizeram depósitos de centenas de milhões de reais em fintechs. Esse dinheiro pode ser de combustível? Pode. Mas pode ser de qualquer outra coisa.
Valor: Criptomoedas são uma frente de atenção?
Barreirinhas: Estamos debruçados sobre isso junto com o BC e a CVM. Sabemos qual é o desafio que o mundo inteiro está enfrentando com criptomoedas, com stablecoins. Em relação ao restante do mundo, o Brasil tem uma posição até mais favorável. A Receita Federal foi um dos primeiros órgãos no mundo a ter cadastro de operações. Nós temos as declarações prestadas pelas “exchanges”, principalmente, para aquelas intermediárias aqui no Brasil.
Valor: Contas-bolsão têm que acabar?
Barreirinhas: É uma questão regulatória. Pela sistemática das fintechs, eu não vejo muito como acabar com elas. Um pequeno comerciante, eventualmente, ele vai receber alguma coisa em dinheiro. E se ele quiser depositar diretamente, vai precisar da conta-bolsão. A conta-bolsão, no meu entender, poderia existir até um determinado valor de depósito em dinheiro. Mas isso não é a competência da Receita. O que nossa investigação apontou foi esse uso indevido. Eu já oficiei tanto o BC quanto a CVM para que eles tomem ciência formalmente e coloquei a Receita à disposição deles.
Valor: Como as fintechs são empresas novas, a avaliação é que a regulamentação não acompanhou e agora vocês estão fechando esses flancos usados para fraudes.
Barreirinhas: Na verdade, a gente começou a fazer isso no ano passado, com aquela Instrução Normativa [que tivemos que revogar]. Na instrução de sexta-feira passada, eu simplesmente estou dizendo que se aplicam regras que existem desde 2015 às instituições de pagamento.
Valor: Se já tivesse essa obrigatoriedade de as fintechs transmitirem as informações, a fiscalização seria maior?
Barreirinhas: Com certeza. Para fiscalizar uma fintech, levamos meses. Porque temos que intimar, abrir uma fiscalização, pedir as informações, elas não prestam imediatamente, pedem mais prazo. Isso leva meses. Com a e-Financeira eu já tenho tudo imediatamente, não só de uma fintech, mas de todas do Brasil. Então, o que a gente levou meses pra investigar uma [fintech], eu vou poder ter imediatamente, apertando um clique e cruzando dados no nosso sistema de gestão de risco. É muito mais ágil. É nesse sentido que eu disse que a gente fez manualmente esse trabalho e agora vamos fazer de uma maneira automatizada.
Valor: Existe a suspeita que haja mais instituições envolvidas?
Barreirinhas: Suspeita, não. Certeza.
